Naná Vasconcelos morreu. Na casa de Diamantina, meus olhos deixaram a água que passava pelo pó de café e fecharam. Aguaram. Sorri sabendo que naquele dia o sol cumpria um eclipse total e que na antenoite a lua cravara uma fase nova em peixes. É o céu, honrado, que recebe Naná, pensei. Lembrei que pedi a ele o único autógrafo que tenho, tempos depois de aprender com Baryshnikov para que servem os autógrafos: para que se possa ganhar um pequeno momento dentro dos olhos de um mestre. O papel, a letra, o assunto — não importam. Importa o gesto, a alegria de se aproximar, manter-se diante e olhar. Cada detalhe da pele, minúcia da ruga, o jeito da mão na caneta, os pelos, cílios, sobrancelhas que curvam, arco da boca se sorri.

Na fronteira do sul, no inverno eu subi ao topo de uma cordilheira para ver um eclipse total solar. Daquela tarde, sei que comigo eu tinha minha irmã; que por cima de tudo eu vestia uma grande manta clara; que também a altura transforma montanhas em paisagem; e que neve e céu podem e se misturam sem linha. Que a luz durante um eclipse é dourada e sólida, absolutamente dourada e sólida. Com o frio, quando a lua por fim se sobrepôs e a atmosfera escureceu plena do sol negro, cada lágrima caiu como se fora pequenino diamante — um tipo de garimpo do dentro.

De volta a São Paulo, telefonei para o meu bem e perguntei “— Quando vamos a África?”. Ele me respondeu elencando os timbres da percussão: madeira, metal, pedra, pele, água. A gente se tornava rio ou chuva amazônica com Naná. Do palco ele chamava um jogo e com as vozes a gente fazia um imenso ruído branco. Ontem pela manhã me pediram três palavras. Eu anotei “escuta”, “ritmo” e “hábito”.

Todos os dias eu posiciono um estetoscópio contra o meu próprio coração.

Eu não me esqueço das pessoas. Mais do que ladeiras, igrejas, cachoeiras, plantas infiltrando-se nos muros, uma palmeira imperial e o piano — as pessoas deixaram algo em mim. Intuo que cintila. Penso que eu poderia ver o que é porque a pele é translúcida. Não vejo, porém.






Sol negro,
percussion music is revolution. [ john cage ]
| publicado na revista +55MAG #2
| 2016
Diamantina, São Paulo
entre o fim da estação e o terceiro dia do outono, 2016