I
C
ópia oculta
*
2014
| publicado na revista +55MAG #1
| em encontro com as fotografias de
Ilana Lichtenstein
Ainda no avião, me enfiei nas três poltronas livres do fundo e deitei. Abandonei a ideia de trabalhar durante o voo porque a aeronave não dispunha de tomadas individuais. Caracas não era, afinal, um destino de prestígio. Era um destino sem tomadas individuais.

Desembarquei sozinha.
#zero
#1
Estou num apartamento grande que divido com outras quatro mulheres. Meu quarto é o menor, me disseram que foi por sorteio e eu não me importo – entra uma luz bonita pela janela pequena e dela eu vejo vários planos de montanhas. Na sala, não. Na sala há uma janela-panorama de frente para um morro de mato seco e silencioso.


Então antes de me deitar eu respirei. |start with a calm and quiet mind. work patiently and persistently, patiently and persistently and you're bound to be successful, bound to be successful|, repetia a voz rouquíssima do Goenka. Ontem, ao pausar minhas mãos sobre o meu corpo, uma sobre o ventre, a outra sobre o plexo, reparei que as temperaturas, o peso, a troca da mão para o ponto, do ponto para a mão, essas qualidades muito físicas foram elas que me fizeram sentir o elo.

Hoje quando acordei, por volta das 7, havia uma ave de rapina, solitária |comme il faut|, no alto do mato seco que vejo colado à janela-panorama. Faz muito calor. As mulheres são todas casadas. Apenas numa delas eu reconheço algo de mim. Ela gosta de usar a palavra |luta|.

Na Venezuela, a diferença de fuso é de duas horas e meia em relação ao Brasil. De onde veio a meia hora? Há poucos minutos, durante o almoço, na embalagem do suco de abacaxi eu li, num coração estilizado, de canto e vermelho: |hecho en socialismo|.

Eu ainda não sei nada sobre aqui.

-
#2
Pôr do sol. Voltei de carro para casa, as mulheres que vivem comigo escolheram caminhar, por isso cheguei só. Peguei o elevador, destranquei a porta e vi. Os móveis estavam todos limpos e mudados. A mesa de jantar foi parar ao lado da janela-panorama, os sofás vieram para perto da cozinha e até minha cama no quarto ela virou. Tínhamos uma faxineira. Me interessei. Gosto muito de quem mexe nos móveis. Acendi um cigarro – fumo pouco aqui –, ziguezagueei pelo computador. Em dez minutos as mulheres chegaram. Uma a uma elas exclamaram, uma a uma elas reclamaram, e um a um os móveis retornaram aos velhos cantos. Desanimei. É uma gente pouco minha essa com que vivo, agora. Abri uma cerveja.

Somos ariana, leonina, sagitariana e libriana. A capricorniana é a chefe de tudo, |comme il faut| [2]. Tenho dificuldade especialmente com a libriana e isso me chama atenção porque o homem por quem me apaixonei é também libra ar.

Não penso nele. Ontem e hoje os dias foram tão cheios. Na tarde saímos para conhecer o campo, viajamos numa van e o interior da Venezuela é meio brasileiro também. Notei que ainda perto de Charallave, que é ainda perto de Caracas, há pixos tipo |bomb|, tipografia gorda, letras gordas. Mais adiante, vi uma mulher grávida, um jovem suado vestindo apenas uma luva, um cobrador pendurado na porta de um microônibus e seu cinto estava torto, uma menina de boné encaixada na perna do pai. Em todos uma luz da tarde encostava e quis fotografá-los.

Parece que minha cara anda caída porque a gente segue me perguntando “|estas cansada?|”. Hoje eu acordei às 4h para trabalhar porque ontem dormi às 20h. Hoje eu trabalhei até o meio dia porque hoje eu estive no campo até às 17h. Hoje eu trabalho até a madrugada porque hoje já são 19h. Eu nunca tinha experimentado uma carga tão pesada de trabalho. No entanto, sinto a consciência do rio. Foi o I Ching que me ensinou, a água descendo a montanha diante de nada recua, diante de nada insiste – mergulha, desvia, contorna, adapta-se sem resistência para chegar ao que lhe corresponde.

Desse cerrado, meu amor, só desemboco se for o mar.
#3
Domingo tem de ser |holiday|. |A day specified for religious observance|, diz-se.

Se forço a vista – e o quanto de esforço impus aos meus olhos no passar da semana, eles lacrimejavam os olhos-linha-de-frente nesta batalha campal que vem sendo trabalhar aqui – só se forço a vista consigo ver o último tom de roxo, na coxa, que a mão dele me deixou. Duas semanas e o tempo de esquecer: ele foi morar num futuro profundo |y lejano|, meu homem libra ar.

-
Durante o almoço Aída me perguntou: "|India se queda en Africa?|" e a olhei. Respondi: "|No, pero comparten un mismo oceano|".

-
Vejo alguém passar a roupa. Yssyssay escuta um ska bom de escutar junto, e eu escrevo encostada à janela-panorama. Chegamos faz pouco de um churrasco, carne fresca, |tajada| são bananas na brasa, aipim aqui se diz |yuca|, fazem um bolinho frito chamado |arepa|. Voltar a falar espanhol é algo bom. |Se me sale|.

-
Descobri um flamingo branco num borrão de tinta. E vi uns pássaros negros, grandes, pousando nos galhos de árvore – coisa que me lembrou as jacutingas que voavam baixo num fim de semana quando ainda amava A.
#4
|Qué decir? Todo empieza a mesclarse.|

Foi a primeira noite que tive dificuldade para dormir. Me vi formando um nó de choro, um treco sentido, era como se engolisse o próprio vazio.
#5
Vi flamingos. De longe fui juntando os tons, uns brancos, uns quase romã escarlate. Antes de deixar Tucacas, já no carro, um deles manchado de rosa voou de lá para cá e fez um arco sobre nós – eu não sabia que então é nesta parte do mundo que vivem os flamingos e agora me impressiona a visão no borrão de tinta.




Faz anos, eu queria ir ao mar num dois de fevereiro. Veio ser num domingo e no estrangeiro, numa ilha de nome |Sal|, para cavar um buraco na areia, sentar-se; acender a única vela, mergulhar num azul que é diferente do nosso verde-escuro-mata, um azul que é de miragem.

Na tarde anterior, eu percebia que os mil corais brancos quebrados na orla tilintavam quando a onda baixava. Faziam tilim tilim tilim a cada vazante, como se fora o próprio vento na força da água. Ou, tantas são as partes de coral depois da cheia que quando a marola quebra a água se recolhe e o chão tilinta.

Há pelicanos também. Grandotes. Amarronzados. E há garrafas pet. Centenas de garrafas pet, e biquínis fio dental, e bundas enormes, e panças de homem, e óculos de sol espelhados furtacor. Eu vi formar-se na areia uma roda de tambores – um reco-reco também – e mulheres vêm dançar ao centro, com seus gorós empunhados rebolam, provocam a percussão. Mas, provocam? Ou simplesmente respondem? Fiquei muitos minutos observando e pensando sobre isso. Por que a mulher não provoca o tambor? Por que ela apenas segue o homem que toca e não cria ela também?

Em contato improvisação, a pesquisa de movimento é feita sobretudo em silêncio – lembrei. Steve Paxton fala abertamente, sobre a música: "ela organiza o movimento". O tambor seria, assim, naturalmente predominante? No entanto, eu sei que é possível – mais, eu sei que é antigo – o corpo do dançarino reverberar e atingir o instrumento, instigar a nova clave. Então, por que a mulher não provoca o tambor?





#6
#7
Tem tanta coisa que eu queria contar. Se ao menos eu conseguisse me desviar do cansaço.

Se conseguisse contaria que em Cayo Sombrero, coisa de dez dias atrás, eu paguei 250 bolívares por uma massagem, na areia, com uma colombiana de dois dentes de ouro e oito filhos, e que a massagem não valeu os bolívares mas antes que eu pudesse escolher ela já puxava com o pente de plástico fino e trançava, desde a raiz e de lado, o meu cabelo comprido. No mês que cheguei de Conacry, eu me prometi que deixaria o cabelo crescer para ter uma trança posta e afrontar o meu gênio passional.




Vinham assim, as notas, os dias, não fosse estar aqui para escutar um presidente falar em golpe, uma imprensa falar em guerra, quando as sobrancelhas forçam dobras na pele e meus olhos vão molhando aos tantos, embaçando de dentro para fora. |Eu queria ver o meu olhar|



Escuto Simon Díaz,
não fumo.

-